A IMPLOSÃO DA MENTIRA




Em um dos email que recebi estava esta poesia de Affonso Romano de Sant'Anna, onde o poeta discorre sobre a mentira e como achei apropriada e bonita aqui a postei, pois entendendo que todos os nossos leitores deveriam tomar conhecimento desse notável escriba e de sua rara habilidade em expressar o seu pensamento e transmitir VERDADES!


 



A implosão da mentira



Affonso Romano de Sant'Anna


Mentiram-me.Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente.

Mentem de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegremente mentem

Mentem tão nacional/mente que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.


Mentem.

Mentem e calam. Mas suas frases falam.

E desfilam de tal modo nuas que mesmo um cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade pela mentira, nem à democracia pela ditadura.

Evidente/mente a crer nos que me mentem uma flor nasceu em Hiroshima e em Auschwitz havia um circo permanente.


Mentem.

  
Mentem caricatural- mente.
Mentem como a careca mente ao pente,

mentem como a dentadura mente ao dente,

mentem como a carroça à besta em frente,

mentem como a doença ao doente,

mentem clara/mente como o espelho transparente.



Mentem deslavadamente, como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o linho.

Mentem com a cara limpa e nas mãos o sangue quente.

Mentem ardente/mente como um doente em seus instantes de febre

Mentem fabulosa/mente como o caçador que quer passar gato por lebre

E nessa trilha de mentiras a caça é que caça o caçador com a armadilha.

E assim cada qual mente industrial?mente,

mente partidária?mente, mente incivil?mente,

mente tropical?mente, mente incontinente?mente,

mente hereditária?mente, mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente

constroem um país de menti —diária/mente.



Mentem no passado..

E no presente passam a mentira a limpo

E no futuro

mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu quem mente.

mas o tribunal que o julga herege/mente.

Mentem como se Colombo partindo do Ocidente para o Oriente

pudesse descobrir de mentira um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria, viajando pelo avesso, iludindo a corrente

em curso, transformando a história do país num acidente de percurso.

Tanta mentira assim industriada me faz partir para o deserto

penitente/mente, ou me exilar

com Mozart musical/mente em harpas e oboés, como um solista vegetal

que absorve a vida indiferente.


Penso nos animais que nunca mentem, mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros cuja verdade do canto nos toca matinalmente.

Penso nas flores cuja verdade das cores escorre no mel silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente jorrando luz, embora tenha a noite pela frente Página branca onde escrevo.

Único espaço de verdade que me resta.

Onde transcrevo o arroubo, a esperança, e onde tarde ou cedo deposito meu espanto e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema explosivo-conotativo

onde o advérbio e o adjetivo não mentem ao substantivo e a rima rebenta a frase

numa explosão da verdade

E a mentira repulsiva se não explode pra fora pra dentro explode implosiva.

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